Poesia de garagem, música, descrições e indiscrições. Um blog tardio mas que nasceu de sete meses, angustiadinho e agora com algumas revisões gramaticais.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Nããão, não foi no domingo que ele descansou.

Quinze pras quatro da tarde e o Eddie abre a cortina do quarto. O sol raspa a minha barba rala enquanto o desgraçado gentilmente me grita "acorda pra cuspir". Tentando descolar a pestana, viro pro outro lado do colchonete de dez centímetros de grossura pra ouvir outra gentileza "quer que eu chame a tua mãe pelo nome, ou não?". Grande amigo, já conhecia a sutileza de Eddie Torres desde o dia em que nos conhecemos numa loja de informática onde eu trabalhava vendendo peças de pc's e demais utensílios nerds. Já tava sacando aquela figura de cabelo partido rondando a loja, disfarçando interesse em coisas aparentemente aleatórias. Estava atrás dele quando o patife tentou enfiar por dentro da camisa flanelada um celular bacanaite. Suavemente cantarolei.


- Shoplifters of the world unite and take over.

Quando ele se virou e repondeu na mesma tranquilidade.

- One baby to another says I'm lucky i've met you, it is now my duty to completly drain you.
Fingndo que não havia nada de errado, protegí a saída do cara da supervisão acurada de um gerente escrotíssimo e metódico como um 486. Apesar disso, passamos a jogar uma pelada os três - eddie, o gerente e eu - com o time da loja. Eddie sempre facilitava quando o Diogo vinha lhe roubar a bola.

Grande amigo, gutarrista fuderoso pirado em William Gibson. Levantei e seguí pra cozinha onde ele enfiava um resto de lasanha no microondas. Sentado à mesa, passei um litro e meio de água pela garganta pra deixar a saliva um pouco menos pegajosa da ressaca e comentei.

- Ela que te ligou ainda agora?.

Ele riu.

- Com essa eu caso! Já tamo esse tempo todo juntos e ela nem fresca de eu ter enchido a lata ontem contigo, acordar às quatro com essa voz pra dizer "te amo" e seguir prum festival de porradaria.

Me entregou o prato e foi ligar o som. Black Sabbath.

- Porra, Eddie, tô melhor que tu. Tô comendo uma moleca foda!

- Pára com esses trocadilhos de merda, Bandini.

- Que porra de trocadilho... te fode, caralho.

- Olha: agora quase rimou!

- ...

- Tá, gay, fala.

- Bicho, tu saca: a menina é gata, gente boa, uma senhora foda, mas não vai nada além disso. E pra ela tá beleza!

- E tu tá de reclamação?! Ah vá tomar. Que tipo de ressaca é essa? Engole logo essa lasanha que os shows já começaram há uma meia hora.

- Sério! Tô te dizendo. Não é reclamação.

- Vazio pra caralho. Vou me vestir.

Apressei as garfadas enquanto o chiado efervescente no copo se misturava ao Sonic Youth.

A Scorpions, local onde iria rolar o Fabrikaos, ficava na 16 de Novembro bem próximo da casa do Eddie. Fomos andando pela Cidade Velha em direção ao festival meio que calados. A cabeça latejando no silêncio família do antigo bairro num domingo.

Na frente da casa de shows, encontramos Jayme Katarro que, abrindo os braços, resmungou.

- Esse caras do som são foda. Não deu pra começar só por causa dos pa's. Mas entrem logo que já tem uma moçada dentro.

Entramos. No fim de um corredor estreito, abriu-se o barracão. Palco armado, umas sessenta pessoas e a seqüência monótona de passagem do bumbo. Compramos umas quatro geladas cada, garantido pela promoção clássica de 4x10. A legião de camisas pretas começava a encher o lugar e, pelo final da terceira cerveja, a primeira banda começou: um hardcorezinho nervoso que não nos distraiu do papo que já engrenava entre Eddie, Jayme e eu sobre as gravações de um tributo a sua banda. Com mais de vinte anos na estrada, o Delinquentes é a banda mais respeitada da cidade entre bangers e punks, incluindo aí até indiezinhos menos ortodoxos. Pedimos mais quatro. Pela metade da segunda, a banda seguinte sobe ao palco. Olho por cima do ombro e vejo o vocalista falar algum gracejo pra platéia mas não consigo entender nada. Os riffs da primeira música pesados mas bem tocados me faz ter a impressão que mudaram todo o equipamento de som. Me viro, surpreso.

- Que é isso, Jayme?

- Telaviv, bicho.

- Bom!

- Banda meio nova. Ouve só.
Grindcore, trash, black metal, bem dosados, bem executados. Não conheço tão bem as bandas de metal da minha cidade e essa me entusiasmou. Voz tão demoníaca quanto o resto dos caras. No meio da roda num vórtice de maldade e violência, dois caras chocam suas cabeças. Se olham por uma fração de segundos, se abraçam e pedem desculpas mutuamente. Acho graça e Eddie diz "Isso aqui tá mais na paz que alguns locais "sofisticados" que eu frequento".

- Essa foi "Let the Game Begin" pra vocêêêêsssss...

As luzes se apagaram e por um segundo pensei que fazia parte da performance. Katarro engoliu um resto de cerveja.

- Puta merda, fudeu o som.

O espaço quase mambembe da Scorpions não segurou a energia que a Telaviv puxava. A caixa de força fritou e o que me alentava era o fato das cervejas cotinuarem geladas.

Já beirava as oito da noite quando, vendo que o problema de energia não iria ter solução (soubemos depois que rapidamente restabeleceu-se o som com o apoio de um gato profissional no poste de fora), Eddie sugeriu que caíssemos fora.

Ouvimos retumbando pelas vielas da Cidade Velha um som de carnaval. Seguimos a percursão até a praça do Carmo. Um pequeno carro-som fazia um estardalhaço, plugava a voz do Eloy Iglesias que gritava marchinhas pra uma praça lotada. O lugar abrigava umas mil pessoas entre gays, gatas, playbas e pedintes. "Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça" gritava uma turma de meninas com uniforme de escola de governo. Entramos no meio do povo pra chegar no Salomão e pedir algo forte. Descemos duas caipirinhas e, saindo do botequim, outras duas de saias pregueadas se aproximaram - uniforme escolar quase transparente. Eloy atacou a marcha do Vestibular. Indo na direção das lolitas, Eddie gritou "a parada é skinhead, G" e emendou a marcha bem alto "Esse ano no vestibular eu vou raspar cabeça de mulher" enquanto eu comentava alto "viva o brazilian wax, porra". Elas provavelmente não sacaram nada e saíram por alguma tangente. Acendí um cigarro e nos metemos no bloco de novo, suando com os indicadores pra cima. Perto do cara que segurava o surdo encontramos uma figura improváve que nos achou mais improváveis ainda.

- Caralho, Garapa, aqui?!

O olhar vermelho cambalendo tanto quanto as pernas, não conseguia nos ver pra crer. Norberto Garapa, maior produtor de shows de reggae do estado - "eu só compito e 'comfumo' com o Maranhão no quesito Jah" - dançava agarrado a duas morenas. Afodite e sua nêmesis. O grau etílico do trio era explicado pelo isopor cheio de gelo e já com poucas latinhas e garrafas de ice. Norberto só balbuciava "tô é doido, tô doido..." e a gente ria com as duas. Nos entregou duas latinhas e ofereceu as meninas. A gente dançava tão sem jeito quanto o Garapa sem as mesmas justificativas que ele e um grupo de bichas tiravam sarro da nossa cara. Quando deixamos o isopor só no gelo, o regueiro resolveu que ia tirar acampamento dizendo que astar indo pra uma radiola matar a noite.

- Vamo pro Fumaça.

- Que Fumaça, Garapa?

- Bora, caraio! É uma radiola no Tucunduba...

Arrotou.

- Tucunduba?! Tá doido, Norberto? A gente vai ser estuprado lá, irmão.

- Que estrupado, caraio. Cês tão comigo, caraio.

- ...

- Bora, caraio, vamo. Entra os dois no carro.

- Elas vão?

- Essas porra moram lá, caraio.

- É?

- Caraio!!!

Compramos mais umas latas e entramos no peugeot com os três. Engatou a primeira e o carro deu ré.

A nêmesis abriu o porta-luva e tirou a muca. Antes de fechar, Garapa mandou "pega esse disco aí, caraio". Ela pegou e começou a confecção em cima da capa.

- Dá o cd. Bandini, tu vai gostar desse.

Me passou um disco do Firebug e eu estranhei sabendo que o cara só ouve roots.
Afrodite recebeu ordens para acender. O cheiro inundou o peugeot com uma nuvem delícia. Puxei e passei. Camarada Torres declinou alegando que não fumava mais há uns dois meses. A parada girou junto com o disco que deu o tom até a entrada da baixada. O Tucunduba é um bairro fudido, um dos mais perigosos da cidade, dominado pelo tráfico como qualquer favela que se preze. Mas alí o Garapa era rei. Produtor dos melhores show do circuito São Luis - Kingston - Belém, o cara era mais que benquisto dentro da máfia maranhense que impera no bairro. Entra e sai da quebrada a hora que quiser. Mesmo beirando as onze da noite, tricotava o breu total das ruelas da favela sem o menor receio de nada. Depois de várias curvas e passagens de crateras piçarrentas enlameadas chegamos bem perto do tal Fumaça. Quase fico sóbrio quando ví o rodopio de luzes azuis e vermelhas iluminando em turnos contínuos as madeiras dos barracos.

- Porra, tamo ferrado, Eddie.

- Puta merda, Bandini, eu tô ajeitando a minha vida... não pode ser... não pode!

- Ora, caraio, fica frio rapeize. Deixa eu ver que merda é essa.

Estacionou e desceu com as duas. O carro silenciou com a gente: petrificados numa síndrome de pânico instantânea embalada pelo Firebug. Eu tentava falar alguma coisa pra tranquilizar o Torres que depois me disse que tentava a mesma coisa comigo mas não saia som de nenhum dos dois. Já esperava o oficial mandar baixar a janela e ver meus olhos vistosamente baixos e a cara braquíssima e embriagada do maluco ao meu lado. No segundo seguinte ia baixar o porta-luvas e retirar um tablete de duzentas e cinquenta gramas negras. Xeque-mate. Xadrez pros cinco. Então o Garapa vem em direção do carro num papo furado com a autoridade em plantão. Abre a porta e olha pro banco de trás. Pra gente.

- Porra, o Fumaça tá fechado. A Radiola que tava tocando era roubada. hihihi que foda, caraio!

Não conseguí nem sorrir no momento seguinte. O Eddie dava uns risos que eu não sabia se era de nervoso ou alívio.

- O major aqui disse que é melhor a gente sair fora. Vamo nessa?

Mostrou a beata entre o amarelo dos dedos. Só aí me acabei numa gargalhada. Entrou no carro e saímos da suposta armadilha. Seguimos pelo Jurunas até o início da Padre Eutíquio em estado de graça. O Garapa disse que ia pra casa e então o Eddie pediu pra nos largar no Bar do Gilson pra beber uma com os sãos. Tudo bem. Nos deixou na porta do bar lotado. Logo já havíamos passado pelo minúsculo corredor que dava pro quintal da residência do Gilson.

O lugar é a mais tradicional casa de choro e fica abarrotado aos domingos quando além dos chorinhos rola um samba interessante. Copos americanos nas mãos, sentamos na única mesa disponível que pegamos de um casal que não saía da pista, dançando. Levamos no chorinho até o bar ficar quase vazio, lá pelas duas. A maior parte da banda já tinha tirado o time e no palco havia apenas um violão de sete cordas, o bandolim do Gilson e alguém que subira pra cantar. Com a cabeça inundada de álcool engatamos o papo.

- Já te falei que ela é pra casar, G?

- Te fuder...

- Te dizendo! Olha a mensagem...

O telefone na mão dele com aplicativos suficientes pra controlar um foguete tinha escrito "Baby, tá td bem? Me avisa qnd for p casa. Fico preocupada ñ consigo dormir. T adoro."

- Hehehehe. Pra te dar a real, bem que eu queria que a minha fodinha me ligasse agora.

- Porra, Bandini, eu não tô falando só de putaria! Eu tô falando de tu ter uma mulher que te acompanhe num bar desses e num fim de noite dum domingo desses fique curtindo uma música linda dessas cantadas pelo mestre Olivar.

Me apontou o cara que tinha tomado o microfone. Ouví o cara e a voz tinha realmente algo que emocionava. Mas devolví.

- Rapá, eu prefiro mesmo é uma raba maravilhosa que não me dê o trabalho escroto de um dia ter que catar os meus cacos.

- Quê! Vai tomar no cú, Bandini!

- Tomar no cu o caralho, porra. Então ouve o que esse tal desse teu mestre tá cantando, seu viado.

Olivar apunhalava.

- Ah! Se já perdemos a noção da hora / Se juntos já jogamos tudo fora / Me conta agora como hei de partir...

- Porra, vamo pagar essa merda logo. Vai te tratar, filhadaputa.

Conta fechada. Saímos de pernas trocadas pela Padre Eutíquio atrá dum táxi às duas e meia. Eddie num amor incurável me enchia a porra do saco com esses papos melados de algum tipo de salvação. Com o gadget mágico na mão, ele foca nós dois.

- Tecnocrata de cu é rola, Bandini. Olha o que eu faço com essa porrinha aqui. Vou mandar uma vídeo pra ela mostrando que tá tudo bem. Pára de ser esse puto de merda...

Ria alto com o telefone mirando a própria testa quando alguém arrancou o aparelho e correu. Eu, vestido de herói etílico, corrí atrás do cara enquanto o babaca ficou prostrado olhando a mão vazia. Alcancei a camiseta do cara e nós dois caímos no asfalto. Conseguí acertar dois socos de leve nas costelas e recebí um firme na cara. Já estava com o braço atado ao pescoço do filho da puta quando senti a primeira paulada um pouco acima da têmpora. Virei de lado largando o pescoço do canalha e vi o celular brilhando solto no asfalto cinza. Mais uma e comecei a ouvir em slow motion um hit do Dead Lover's Twisted Hearts: "I never said I wanna be your partner / Oh! Let the devil take care".


Epílogo.

- Solta ele, porra, que eu conheço o cara. Solta agora, porra.

Um pano laranja pairou sobre a minha cabeça encharcando imediatamente o tecido. Me vi aparado num abraço quase maternal de um negro gordo enquanto uns quatro malditos caminhavam displicentes para longe.

- Porra, que merda tu fizeste? Puta que pariu, que merda!

Meu braço esquerdo parecia uma mangueira de água podendo ser dobrada em qualquer parte da sua extensão. Meu flanco direito estava moído. Não sei exatamente como Odair e Eddie me levaram para o PSM, lembro apenas de um carro, eu acho. No dia seguinte, após a cirurgia que me enfiou três pinos no antebraço, Eddie me lembrou quem tinha me salvado a vida.

- Tu não te lembras do Odair? A gente bateu bola com ele umas duas vezes naquela quadra de pelada perto do Gilson. Lembra do primeiro jogo que a gente marcou lá com a moçada da loja? Aquele que quase ninguém foi e que chamamos o pessoal da rua que ficava ali pela quadra pra formar o outro time. Ele tava aqui até ainda agora. Tu tava dormindo e ele ficou te sacaneando, dizendo "esse bicho era o único que não dava carrinho, não entrava na maldade e ainda tomava uma gelada com a gente depois". Disse que quer marcar um jogo com a gente, mas só se tu for pro gol.

A dor era insuportável.

- Não saber jogar bola pelo menos me valeu da alguma coisa... Ai, puta merda de dor escrota. Chama a enfermeira, bicho. Pede pra ela me dar alguma coisa. Logo!

Voltou com a enfermeira que parecia ter virado duas noites seguidas e um médico que aparentava uns dezessete anos. Ele perguntou.

- Tá doendo quanto?

- Quer em número, doutor?

A enfermeira arregalou um pouco os olhos de raiva o que piorou as olheiras.

- Responde pro doutor Fábio! Quanto dói?

- Pra caralho.

Ele se virou pra enfermeira e balbuciou alguma coisa com sufixo "ina".Eddie, do meu lado ria e fotografava tudo. A mulher preparando a seringa com uma solução. Minha cara de agonia tentando não rir quando ele sussurrava "mor-fi-na". Ela preparou uma veia, pentrou a agulha e no rítmo suave do êmbolo minha visão periférica começou a ser tomada por uma luminosidade branca.

- Oohhh... deus!

Eddie se vira para a gorda.

- Por favor, bota o resto numa quentinha. Nós vamos querer pra viagem.

Ela saca a seringa do meu braço sem tirar os olho seríssimos do Eddie. Ajeita a gola do avental meio amarelado e caminha de volta pelo corredor.

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