Poesia de garagem, música, descrições e indiscrições. Um blog tardio mas que nasceu de sete meses, angustiadinho e agora com algumas revisões gramaticais.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O Primeiro Milagre no Convento Tomasino

A espuma havia se adensado o suficiente e agora escorria vagarosa pelas costas da freira. “É meu último banho, assim, gelado” pensou alto enquanto desligava o chuveiro ancião. Com cuidado e delicadeza enxugou os ombros, o colo, os braços, ancas, pernas, pés e num pequeno malabarismo ritual enrolou a toalha na cabeça. A porta rufou com as batidas da Irmã Constância, um preciso auto-retrato sonoro de austeridade e frieza. Sua voz, embora abafada pela madeira espessa da porta, ressoou de tal forma pelas paredes azulejadas do banheiro que Sofia pareceu sentir o ar adensar.

– O padeiro estacionou a motoca na lateral do refeitório. Não achei que irias até o fim com esta sandice, Irmã.

Irmã Constância marchava escada abaixo, despertando um alvoroço neurótico nos ratos comprimidos pelo assoalho, quando a cabeça de Sofia projetou-se tesa pelo vão da porta. Esqueceu o terço amarrado no canto da pia e caminhou com passos largos até o quarto abraçada ao roupão como se tentasse evitar que o ímpeto de coragem decolasse do peito nu e fugisse assustado pela janela, de volta pro mundo.

Vestiu o jeans como se fosse hábito: era tão bom descobrir o corpo. Abotoou a blusa convicta, calçou os sapatos. e empunhou a pequena mala. Seguiu célere em direção à sala do capitulo para alcançar a saída pelo refeitório onde se despediria da Irmã Maria, entregando-lhe seu livreto de orações particular e receber em troca a medalhinha consagrada de São Tomé que a amiga apertava nas mãos desde os doze. Cruzou o triste jardim do claustro respirando sopros duma ansiedade feliz. No momento em que adentrou o capítulo, pode ver a corpulência de Irmã Constância pousada ao lado do pequeno altar no fim do corredor. Apertou o passo segurando a mala contra o peito, o olhar mirando o chão com os movimentos serpejantes dos arabescos induzindo-lhe vertigens. Pensou que conseguiria alcançar a entrada do refeitório sem precisar ter com Irmã Constância no preciso momento em que esta levantou a cabeçorra ampliada pela túnica.

– Abandona O Filho e O Pai na mesma fuga feito uma adúltera!

– Não abandono ou traio quem anda comigo e me protege. Abandono a casa.

– A noviça Sofia teve sua chance de optar pela consagração já faz alguns anos. Ela assumiu os votos com o amor do Senhor. Hoje, a freira Sofia, como uma mulher de fé, deve honrá-los sob pena de excomunhão.

– Não se conhece o amor na escuridão dessa clausura, Irmã. Desculpe, João Paulo me espera. Adeus.

– Um padeiro! Largas o amor sublime e majestoso d’O Rei dos reis, rejeitas a eterna compaixão do Salvador pelo padeiro?! Tua mãe guardiã da memória do teu velho pai vai definhar quando souber desse desvario. Ela que sempre entregou o que tinha de valor aos desígnios de Deus e do bem da Santa Igreja. Que confiou a mim a guarda e condução dessa filha que agora se deixa desviar... pelo padeiro?!

– Ela já sabe, Constância. Sabe bem mais do que imaginas.

A buzina aguda e fanha da moto do padeiro tocou do lado de fora do convento. Sofia sentiu a plumagem do rosto eriçar e virou-se para a porta. Mas antes de ganhar o mundo procurou o altar para fitar a imagem altiva e indiferente de São Tomé por um breve e último instante. Retomou tão depressa o caminho da saída que não pode observar nos olhinhos entalhados do santo, uma gota pequena e cristalina intumescer numa leve cadência até romper-se riscando de cima a baixo o rugoso rosto de madeira.

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Introducing: Sebastian Maya

Introducing: Sebastian Maya by Gbandini

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011