Poesia de garagem, música, descrições e indiscrições. Um blog tardio mas que nasceu de sete meses, angustiadinho e agora com algumas revisões gramaticais.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Endomancia.

  Eu tinha a certeza de nunca ter tido a coragem dos grandes homens. De não ser revestido de brio suficiente para encarar a sorte do mundo. Tudo o que eu tinha (além daquela simples certeza) eram sete anos.
  A algazarra – única profissão de fé e entusiasmo das crianças, agnósticos por excelência – fazia brilhar mais as folhas dos galhos e azulejos do fundo da piscina, a espuma no topo das taças cheias de cerveja e alguns olhos adultos. Naqueles dias que antecipavam as festas, o sítio aumentava de tamanho. Do portão aos confins escuros no fundo da pequena propriedade, estendiam-se e escondiam-se segredos revelados somente às menores retinas. Debaixo de um jambeiro, todos desafiavam um reino de cabas assassinas; numa chuva, represava-se com areia, cacos de tijolo e pedaços de madeira, pequenos lagos para naus de caixas de fósforo que seguiam em vias cuidadosamente construídas para desembocá-los numa vala enorme, um pequeno córrego que cortava toda a vizinhança; nesse mesmo córrego colhiam-se girinos e a caça de muçuns era permissiva, para alegria dos mais velhos de ar-comprimido. Escalado na goiabeira, eu enxergava tudo com receio e asma, levado na torrente da vida.
  O córrego separava o mundo de alvenaria dos fundos do sítio. Lá árvores mais densas resfriavam o ar cobrindo um pequeno galinheiro e a casa do caseiro com seu pátio de cheiro úmido e limo, cercado de leves cantigas engaioladas. A casa me parecia irregular como se uma pequena onda erguesse o solo numa ponta da construção de madeira. O pequeno interior pulsava lento nos longos intervalos do abre-fecha da velha geladeira. Ali nada era morto. Mas nada era exatamente vivo.
  Tinha chegado mais cedo nesse sábado e ouvi, amarrado ao pé do pátio, um balido paciente. O bode de chifres jovens erguia a pata dianteira e bafejava. Fiquei parado, de ombros murchos e braços estendidos ao longo do corpo, por algum tempo conversando com os olhos do bicho até ouvir o primeiro bumbo de um samba colocado por meu pai. Corri de volta ao barracão onde a voz de Roberto Ribeiro chamava. Meu pai com os braços erguidos sacaneava meu padrinho que acabava de chegar: “Professorzinho de merda!”. A resposta era sempre de um amor impublicável. Abraços e mais copos. O sítio, devagar, ia se enchendo de mais gente, abraços e copos. Era sempre assim, não só pelos três dias de natal que viriam pela frente. Tios e primos e os amigos de tios e primos se avolumavam entre discos, cerveja, conversa de venturas. Tudo correndo igual exceto pelo balido displicente amortalhado pelo barulho da piscina.
  Por volta das três da tarde, quando todos nós olhávamos fixo procurando pequenas bolhas no córrego, duas figuras adultas atravessaram a pequena rampa que cruzava a vala. Os mais velhos e eu desviamos a atenção para o caseiro e meu tio que preparavam algo perto da pequena casa dos fundos. Nos levantamos e, seguidos pelo resto de moleques, corremos para perto dos dois. Podia ver três bacias, uma pequena sacola, uma corda azul, um copo pequeno, uma garrafa de cachaça dourada, o peito vazio cheio de si do meu tio. Algumas mães vieram pegar os seus menores. Fiquei, os pés fincados atrás de alguém maior. Ouvia a harmonia engaiolada mesclada em antecipação ao gemido sinistro do bode e as vozes grossas de ordem “Tem que amarrar firme aí por cima desse pau do telhado, viu?”. “Passa a corda nas patas de trás do bode, aí. Aperta!”. Como num contrato tácito, o animal não criava o menor problema. “Deita o bicho, deita que eu vou puxando a corda aqui, na manha”. “Isso!”. Um balido. “Vai, sobe mais. Não, cacete! Até a cabeça bater aqui no meu calção”. Um gole. “Isso aí. É só prender bem a corda e pegar a madeira”. Outro gole. “Agora bate firme. É, entre o chifre e o pescoço”. Mais um mé. “Dá-lhe!”
  Os meus olhos abertos. Os do bode também. Da boca pequenina surgiu uma baba carmim que logo se transformou num filete curto que pintou círculos no aço da bacia. Meu tio abriu a bolsa e disse ríspido “Vamo, quem é o cabra que vai dar conta do bode?” e seguiu numa risada “Sacô?! Cabra!”. Durante o resto de risada todos voltaram para a piscina: por constrangimento, tédio ou asco. Eu fiquei. Recobrando a sisudez ele retira a faca e retoma as ordens. Traça mapas no couro. Fura o pescoço e o sangue flui. Seus olhos diminuem. Observa o bicho se esvair até quase secar. Começa a separar o couro da carne numa calma fingida, dando ordens pro caseiro que nada faz, uma vez que ele próprio executa o trabalho preciso. Num canto dos lábios um cigarro, noutro uma felicidade estranha. Sem o couro, o corpo claro e rosado refletia a luz quase opaca que vazava entre os galhos. Ele desceu o animal e com outra faca – e eu nunca entendi  a diferença entre essa e a primeira – rasgou a linha do abdômen do ventre ao peito. Os intestinos escorregaram para outra bacia. “Se só sobraste tu dos cabra frouxo, vem ajudar teu tio a lavar os miúdos, moleque”. Me ajoelhei ao lado da bacia e daquele corpo de olhos abertos. As pequenas pedras do chão batido doíam nos joelhos, os odores novos e levemente doces mexiam meu estômago, mas eu engolia minha saliva estoicamente. O caseiro do meu lado segurava uma mangueira pra ajudar na lavagem. Meu tio ia cortando os órgãos um a um e nos entregava. “vai, limpa primeiro esses rins pra aprender”. O rim, um pouco quente, ainda parecia vivo. Limpei-o como um pequeno troféu. O resto das víscera ia se seguindo: fígado, pulmões, coração. Tudo despejado na terceira bacia. Os intestinos iam ficar por conta do caseiro mas pedi para ajudar no processo. “Cheios de bosta!” e eu não tinha certeza a quem ele se referia. Esticávamos as cordas delgadas espremendo-as, esvaziando toda a merda no chão, depois um jato de mangueira no interior para limpar os restante. Eu estava radiante. Da sacola ele sacou um cutelo, e com uns três ou quatro golpes no pescoço separou a cabeça. “Pronto, agora é só guardar”. O crânio pousado na janela não me fitava mais.
  Ouvi alguns gritos vindo do campo de futebol, times sendo separados, aquecimento. Voltei pra piscina para me lavar antes que me pai me visse, guardando tudo. A festa continuava e continuaria até segunda, dia vinte cinco. As brincadeiras permaneceriam as mesmas. O zelo extremo de minha mãe também. As gargalhadas dos adultos, a bebedeira reluzente, as discussões acaloradas. Os balões, as luzes artificiais, as nozes, as frutas quase vermelhas não mudariam o tom. Apenas a ceia seria diferente com o bode assado do baiano. Algo havia morrido naquele natal.

4 comentários:

Jorge Palmquist disse...

Muito Bom guga! sempre soube que eras um pouco psicopata, agora que sei que maltratava animais na infância, só faltas confessar que mijavas na cama e que eras piromaniaco pra fechar a tríade de Macdonald e confirmar minhas suspeitas!

Gustavo Rodrigues disse...

Acertaste na piromania também, Cerebelo!
E, bem... me lembro de algumas vezes, por medo de ir ao banheiro, mijei pela janela do apartamento.

Agora confere, doutor?

José Mattos disse...

Lembrança de um sabarau antigo, como sono que chega matando a pau. "sempre que penso em literatura, penso em ti", foi o que me disseste dia desses... Já te disse que é recíproco, pois estas tuas linhas tavam por ai fazia tempo... Precisamos rever as promessas vagas cão.

Grande abraço,

J.Mattos

Unknown disse...

"Marcadores: Contos"

contos, no plural? se de onde veio isso tem mais, que legal, hein!