Poesia de garagem, música, descrições e indiscrições. Um blog tardio mas que nasceu de sete meses, angustiadinho e agora com algumas revisões gramaticais.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Patético

Atravessei com cuidado a porta do escritório que bateu violentamente às minhas costas. Segui através das baias sem muito norte, com os olhos pescando ângulos e esquinas, imagens tão incontroláveis quanto banais. Uma impressora. Um sapato quase desamarrado de algum cara. A cortina presa no canto da janela. E as pessoas, obstáculos borrados antes da porta de saída. Agarrei firme a empunhadura da pasta e mantive o passo firme enquanto os olhos ainda vacilavam. Tentava manter o ritmo da respiração embora fosse difícil. Lenta e pacientemente a fumaça ia preenchendo o peito, avançando pros ombros, transbordando pela traquéia. Já senti isso aí outras vezes e sei aonde dá. Ou, pelo menos, eu sempre acho que sei.

O que eu não sei é como esse ódio tímido vai inflando. Venho afundando sem motivo aparente desde antes de o Pedro nascer. O elevador chega antes de eu chamar. Entro, pressiono o subsolo e ele sobe. Os três ocupantes permanecem inalterados. A combinação de números no painel, por alguma razão bizarra, me incomoda.  Seis, onze, treze. Busco alguma lógica na combinação para aplacar a raiva que cresce peloss três estarem subindo e eu descendo. Imagino as três mandíbulas travadas mordendo seus risos de escárnio pra que eu não note nada. Respondo o boa tarde de cada um com um movimento mudo de lábio. Amabilidade não é nada além de graxa. Não, claro que não. É uma demonstração de respeito gentil, necessário, talvez seja até próximo do carinho. É irreal, maquiagem deformando a verdade. Então eu deveria quebrar a mão da mulher que desceu no onze? Não porra! Deveria. A aterrissagem no subsolo me faz dobrar as pernas mais que o de costume. A chave do carro sempre engata no meu bolso e a da porta de serviço salta pro chão quando eu puxo a primeira. Eu sempre me flagro caindo nessas trapaças cotidianas, tolas, desimportantes. Pelo menos uma vez por semana elas tramam e me pegam. Por nada! Absolutamente nada. É a cidade obrigando a me curvar – pois se ela oprime de fato, essas malditas chaves são definitivamente objetos ativos dessa entidade urbana. Percebo a fumaça se avolumando.  Respiro.  Franzo a lateral dos olhos num desespero controlado.  Deus... ao menos foca a atenção na rua. Tu sabes que dá pra segurar isso tudo se parar de pensar. Aproveita que o transito tá tranqüilo. E tá mesmo. Mesmo pro meio da tarde. Dá pra sentir no balançar dos canteiros, nas esquinas mornas, algo suspenso, nostálgico.  Tentando achar o céu entre os prédios começo estremecer de culpa. Firmo a direção. Olho alguns cantos do carro como se fosse achar a origem da culpa e evito o céu a qualquer pena. Respiro. Respiro. De novo. O carro da frente me força a parar no sinal. Ligo o som, abro a janela e vejo um cachorro morto deitado impávido no meio fio. É uma cena e tanto. As patas parecem trotar enquanto o pescoço gentilmente empina a cabeça para trás. O rádio começa a sussurrar uma música de novela quando noto, com algum assombro, que aquela imagem tristemente heróica não me comovia em absoluto. Tento pensar no sacrifício do meu último cão e nada. O sinal abre. A indiferença me perturba. Ela não devia pelo menos me trazer alguma paz?  Puxo o ar. Solto o ar. O peito continua a inchar. Me assusto com o barulho tão habitual da grade da vala na entrada da garagem.

Acendo os faróis até a vaga. Manobro. Não consigo entrar. Vou pra frente. Outra ré. A vizinha deixou o carro em cima da faixa. Estaciono rente ao pilar tento abrir a porta mas o carro está colado ao vizinho e então torço o corpo pra sair pelo carona. Checo as mensagens inexistentes no telefone pra me guiar e proteger da escuridão até o elevador. Eu só quero entrar no apartamento. Só quero um copo de suco. Logo no térreo um garoto entra. Sem dizer uma palavra, me dá as costas e se volta para o painel onde escolhe seu andar. Porra que palhaçada é essa? Vergonha? É medo essa porra? A cabine pára no terceiro. A porta nem chega a abrir e o moleque aciona o botão de fechar. Repete o mesmo no quinto e no sexto. Meu incomodo dispara.  Desce no oitavo andar e eu estou olhando o chão, tentando afastar a imagem do cão estoicamente destroçado de uma vez por todas. Lembro do Pedro. A porta do elevador abre. Caminho o corredor tentando resgatar a chave de serviço do fundo do bolso. Começo sentir um  certo alívio e entro em casa.

Largo a pasta no chão. Sento curvado no sofá. Ligo a TV e sigo pro quarto do Pedro. Uma voz alegre fica ambientando a sala quando eu entro. O leve cheiro do recinto me dá vertigens e eu não consigo compreender bem. Penso no cão. Penso no garoto. Ouço um cão. Gritos de garotos. Vou atrás do suco. A voz na tv pede um singelo ato de doação. Sigo pro sofá tomando uma caneca de suco. Sinto dificuldade em engolir. Um avião passa próximo demais. As crianças gritam. O sufoco volta, Forte. Tenho que me concentrar na tv. Eu sei disso. Ela, alegre, diz que isso não é nada, doando você preenche as lacunas. Da sua vida e da de alguém. O cão rosna. Isso não é nada. Sinto o ombro estremecer. Um ódio genuíno toma cada cavidade do tórax. Levanto, vou devolver a caneca pra cozinha. Três passos. Estou estático. A boca enche de saliva.Um carro grita. As crianças latem. Ouço a minha voz sair como quem traz o luto engatado na garganta: “que é isso? eu não sou assim!”

Tento impedir o urro. Escapa profundo, vivo, terrível. Um som incomum, gutural, colérico. A superfície da pele estremecia como se estivesse fatigada por uma torrente de rancor irracional forçando nervos, fibra, músculo a expurgar culpa e energia.

Estou parado no meio da sala tentando reconhecer meu próprio apartamento. A vizinha vem à mente: mas que merda... Será que chegou lá embaixo? Ah, constrangimento! Constrangimento é pensar em constrangimento agora. Porra a vizinha? A portaria? Vem o primeiro soluço. Não... Isso não adianta. Quase dois anos nisso e nada aliviou. Os dedos das mãos e dos pés se contraem entrelaçados, tentando segurar o desespero crescente. Chorar é pior. Sempre me vejo fazendo algo teatral quando acontece. Como se eu enganasse, mostrando a quem quiser o quanto dói. Aí então alivia e tudo parece uma farsa ainda maior, dor volúvel. Mas dói, dói de verdade. O quanto dói? Não pode doer mais? Pode. Hoje, não foi diferente? Não deixou os episódios do ano passado bem mais leves, simples? A caneca bate na pia e faz mais barulho do que eu esperava. Pego um prato e a faca de cortar frutas. Se ela pudesse ficar com o Pedro na casa da avó... Só hoje... O soluço volta. A faca escorre pro antebraço. Essa merda que eu vivo no fundo me parece banal. Caralho, esse choro, gente desconhecida no escritório, elevador, trânsito, gritando no meio da tarde, agora é tudo cena, um teatrinho risível. Eu supunha que a dor ao menos desse alguma dignidade, mas o que eu vivo é patético. Não me deixa nem doer direito.

O fio risca o meio do antebraço. Uma linha carmim brota, se transforma numa gota, oscila um pouco e cai no alumínio da pia. Patético. Lavo o braço no jato frio da torneira. Pego a caneca e tomo o gole que restava no fundo. 

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